Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Entrevista

 

“Ganhe quem ganhe, continuará tudo igual. Só espero que não ganhe o Aécio, porque aí seria uma guerra”, diz o líder do MST.

A luta pela reforma agrária, que durante os séculos XIX eXX visava o combate ao latifúndio para democratizar o acesso à terra, hoje, tem outros adversários: “o capital financeiro, que domina a produção agrícola, as grandes empresas transnacionais e, óbvio, os fazendeiros que se modernizaram e aderiram a essa aliança”, esclarece João Pedro Stédile à IHU On-Line. Esses atores, que formariam a nova classe dominante do campo, se somam aos meios de comunicação para justificar “ideologicamente à população que o agronegócio é a única alternativa possível, que ele sustenta oBrasil, que produz alimentos baratos, etc.”, pontua.

 

Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente, quando esteve na Unisinos, Stédile explica quais são as análises internas do MST em relação à reforma agrária, avalia os 12 anos dos governos Lula e Dilma e rebate as críticas, recebidas por setores intelectuais, de que os movimentos sociais foram cooptados pelo Estado a partir da ascensão do PT à presidência.

“Não é aí que devemos fazer a crítica”, assinala. E enfatiza: “O problema está quando um movimento social se subordina aos governos, e aí cada um que faça a sua avaliação. (...) O MST passou o tempo inteiro dos governos Lulae Dilma se mobilizando. Ninguém neste país tem moral para dizer que o MST parou de lutar. (...) Recomendaria que reflitam melhor a quem dirigem suas pedras, porque, na nossa concepção, mesmo que tenhamos críticas a outros parceiros da classe trabalhadora, temos de ter cuidado”.

Para Stédile, o ex-presidente Lula nunca “propôs reformas estruturais”. Ao contrário, acentua, o programa que Luladefendeu na campanha presidencial de 2002, e que lançou as bases do chamado neodesenvolvimentismo, tinha três objetivos claros: crescimento econômico, maior participação regulatória do Estado e distribuição de renda. “Nesse programa, não precisa fazer reforma agrária, não precisa tarifa zero [nos transportes], não precisa universidade para todos. Eu acho que Lula foi honesto; não enganou ninguém. Ele cumpriu o seu programa”, avalia.

O líder do MST também comenta as manifestações de junho de 2013 e assegura que elas “são parte da luta de classes”, ainda que alguns grupos não se identifiquem com essa análise. “Claro que eles são fruto da luta de classes, porque essa hegemonia da burguesia financeira e multinacional não resolve os problemas da classe trabalhadora — porque, se falta moradia, falta para a classe trabalhadora; se não há acesso à universidade, são os filhos da classe trabalhadora que não têm acesso; o transporte público afeta diretamente a classe trabalhadora”, acentua.

Em relação às eleições presidenciais deste ano, Stédile é pontual: “A candidatura Dilma e a candidatura Eduardo eMarina são candidaturas alternativas de um mesmo projeto: o neodesenvolvimentismo, cujos parâmetros estão bloqueados e não resolveram os problemas estruturais. A candidatura do Aécio seria o fim do mundo, a volta domodelo neoliberal”.

João Pedro Stédile é graduado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e pós-graduado pela Universidade Nacional Autônoma do México. É membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, do qual é um dos fundadores. Participa das atividades da luta pela reforma agrária no Brasil, pelo MST e pela Via Campesina.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O MST realizou recentemente mais uma mobilização do Abril Vermelho. Este ano, entretanto, praticamente não houve repercussão na mídia, ao contrário da mobilização realizada em anos anteriores. Na sua avaliação, por que ocorreu esta falta de repercussão?

João Pedro Stédile – Do ponto de vista do calendário de mobilizações, neste ano, o dia 17 de abril caiu na Semana Santa, e decidimos fazer uma jornada de outro tipo, mais prolongada e duradoura, de acordo com a conjuntura de cada estado. Em alguns estados foram realizadas ocupações, como em Pernambuco; em outros estados, recém iniciaram-se as marchas, como em São Paulo; em outros, ainda, realizamos atividades nas cidades, como as feiras agroecológicas em Alagoas, e o lançamento do documentário O veneno está na mesa II, de Sílvio Tendler, no Rio de Janeiro. Então, o processo de mobilização ainda está em curso e não ficou concentrado numa só semana.

Entretanto, de fato, um dos grandes problemas que a luta social enfrenta no Brasil é a natureza da mídia, porque, além de ser uma mídia concentrada entre seis ou sete grupos econômicos, que usam os meios de comunicação para acumular riquezas — e não é por nada que a família Marinho é a segunda ou terceira família mais rica doBrasil —, essa mídia, nos últimos 10, 15 anos, adquiriu um papel ainda mais ideológico na sociedade e, em especial, na relação com as lutas sociais no campo.

O olhar condescendente da burguesia

Na época do capitalismo industrial, a luta pela reforma agrária dos camponeses era contra o latifúndio. A própria burguesia industrial nos olhava com certa condescendência, porque, afinal, depois que nós conquistássemos a terra e se multiplicasse o campesinato, geraríamos mais compras na indústria, maior integração no mercado. A burguesia em si não se sentia afetada e foi por isso que ela nos tolerou. Porém, de dez anos para cá, a nova classe dominante do campo não é mais nem o latifúndio, nem a burguesia industrial; formou-se uma nova classe dominante. E essa classe é formada pelo capital financeiro, que domina a produção agrícola, pelas grandes empresas transnacionais e, óbvio, pelos fazendeiros que se modernizaram e aderiram a essa aliança. E ainda há um quarto elemento da composição de classes: os meios de comunicação. A burguesia usa os meios de comunicação para justificar ideologicamente à população que o agronegócio é a única alternativa possível, que ele sustenta o Brasil, que produz alimentos baratos, etc. Quem faz esse discurso todos os dias? A mídia. Então, ela deixou de ser um canal informativo e passou a ser um palanque ideológico da burguesia. Ela participa permanentemente da luta de classes.

Basta ver as manifestações de junho de 2013 para saber como a mídia se comportou. No campo acontece a mesma coisa. A mídia procura invisibilizar as lutas sociais. Há companheiros nas universidades dizendo que o governo está criminalizando as lutas sociais. Não. Nosso problema não é só repressão policial. Nosso problema é a repressão ideológica que os meios de comunicação fazem contra qualquer luta social.

IHU On-Line - O que a mobilização organizada, a partir da realização dos grandes eventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, indica sobre o estágio atual das articulações do MST? O Movimento dos Sem Terra perdeu seu papel de liderança na política nacional?

João Pedro Stédile – O MST nunca se propôs a ser protagonista nem vanguarda de nada. Nós queremos apenas contribuir na luta pela reforma agrária e para as mudanças na sociedade. A luta de classes no Brasil e em qualquer parte do mundo, de acordo com a teoria da escola britânica de marxistas — Eric Hobsbawm, Giovanni Arrighi, etc. —, se dá em ondas de enfrentamentos entre as classes antagônicas num mesmo período histórico. No Brasil, desde 1989 houve um refluxo das massas após a classe trabalhadora ter sido derrotada no seu projeto democrático popular. A última grande greve no país foi em 1988, a última grande conquista que tivemos foi a Constituição de 88. Com a derrota [eleitoral] de 1989, quando de fato aflorou o neoliberalismo, e a burguesia virou hegemônica na sociedade brasileira, a classe trabalhadora refluiu e foi defender a sobrevivência.

O campesinato e as forças populares do campo, como não estavam ligados à luta direta pelo emprego, continuaram a mobilização até 2005. Então, a classe trabalhadora como um todo refluiu, porém os camponeses não. Nós, do MST, de 1997 a 2005, assumimos um protagonismo na luta contra o neoliberalismo que não esperávamos, porque continuamos mobilizados, e os outros não. De 2005 para cá, fruto de todo esse processo da luta, os camponeses também refluíram e, nós do MST juntos, como parte dessa onda histórica de refluxo.

 

"Nosso problema é a repressão ideológica que os meios de comunicação fazem contra qualquer luta social"

Significados das manifestações de junho

No ano passado, o ressurgimento das manifestações com a juventude teve dois significados: primeiro, que aquele programa de composição de classes do neodesenvolvimentismo, aplicado pelo Governo Lula-Dilma, não foi suficiente para resolver os problemas do povo e, em especial, da juventude (de universalização da educação, de moradia, de transporte público razoável), e por isso a juventude foi para a rua; o outro significado é que a juventude sempre é o termômetro que indica quando vai começar o reascenso, porque, como ela está fora do sistema de produção, enxerga e se mobiliza antes.

Então o grande anúncio das mobilizações do ano passado é de que há sinais de que será possível, a curto prazo, ocorrer um novo reascenso do movimento de massas, porém isso precisa ter um caráter classista. A classe trabalhadora organizada também está dando sinais de que está insatisfeita e quer mudanças. Onde encontramos o sinal que é invisibilizado pela mídia? A média anual das greves da classe trabalhadora industrial durante os 15 anos do neoliberalismo, inclusive no governo Lula, foi de 200 ações. Já no ano passado foram feitas 900 greves da classe trabalhadora, no setor industrial e dos bancários, que há anos não faziam uma greve nacional. Essas 900 greves são um sinal de que a classe trabalhadora pode não estar na rua, em marcha, mas começou a estar disposta a se mobilizar. O que falta é, no próximo período, construirmos pontes de unidade entre a juventude e a classe trabalhadora, para que seja construído um programa unitário de mudanças e reformas estruturais e se aglutinem energias para mobilizações sociais.

IHU On-Line – Houve luta de classes nas manifestações de junho de 2013?

João Pedro Stédile – Claro. As manifestações são parte da luta de classes.

 IHU On-Line – Embora os manifestantes não a identifiquem?

João Pedro Stédile – Embora não a identifiquem ou embora alguns grupos se considerem anarquistas. Claro que eles são fruto da luta de classes, porque essa hegemonia da burguesia financeira e multinacional (que inclusive maneteia o próprio governo, como diz Olívio Dutra), não resolve os problemas da classe trabalhadora — porque, se falta moradia, falta para a classe trabalhadora; se não há acesso à universidade, são os filhos da classe trabalhadora que não têm acesso; o transporte público afeta diretamente a classe trabalhadora. Foi um segmento da juventude que levantou primeiro a bandeira da tarifa zero, mas é uma bandeira da classe trabalhadora. Os principais estopins para mobilizar o pessoal das cidades é a recuperação da qualidade do transporte público e a luta pela tarifa zero, porque é possível, do ponto de vista da economia brasileira, garantir transporte gratuito para todos os trabalhadores.

IHU On-Line – Estas manifestações do chamado Outono Brasileiro suscitaram críticas aos movimentos sociais tradicionais, no sentido de que eles deixaram de fazer mobilizações e de que estariam saturados. Como o senhor vê essas críticas?

João Pedro Stédile – Isso é natural. Os movimentos sociais têm as suas características e as suas especificidades, que vêm de 20 ou 30 anos. Ou seja, temos um modus operandi, temos uma metodologia para organizar a luta, mas isso não quer dizer que ela se contrapõe à liturgia que a juventude, que está desorganizada enquanto classe, utiliza para ir para a rua. Eles utilizam outras formas de propaganda, de motivação, de comunicação — o principal veículo deles era o Facebook. A classe trabalhadora que está dentro da fábrica não precisa de Facebook; ela utiliza outros métodos. Então, qual dos métodos é bom ou ruim? Os dois são bons.

Precisamos não cair nesse simplismo, que às vezes alguns porta-vozes da juventude utilizaram, de criticar os outros movimentos porque eles fazem diferente. O diferente é bom; não precisamos ser todos iguais. Mas o importante é que estejamos dispostos a criar condições para todos lutarmos juntos, porque as conquistas de tarifa zero, de melhoria nos transportes, de moradia e universidade para todos só serão possíveis se todas as formas demobilização popular se organizarem para enfrentar o poder do outro lado.

“A classe trabalhadora que está dentro da fábrica não precisa de Facebook; ela utiliza outros métodos”

IHU On-Line – O movimento social recebeu muitas críticas após a eleição do governo Lula, entre elas, a de ter sido cooptado pelo Estado. Como o senhor recebe as críticas feitas aos movimentos sociais, inclusive ao MST, de terem sido cooptados pelo Estado?

João Pedro Stédile – É evidente que, dentro do movimento sindical, dos movimentos sociais, houve deslocamento de lideranças que tinham feito a luta de classes antes para assumir cargos públicos, mas isso não é problema nenhum. Ao contrário. As lideranças que se propuseram a trabalhar no governo não só têm o direito legítimo de fazer isso como contribuem para melhorar o governo. Porém, não é aí que devemos fazer a crítica. O problema está quando um movimento social se subordina aos governos, e aí cada um que faça a sua avaliação. Nós do MSTassumimos, como princípio organizativo, que todo movimento social deve ser autônomo quanto ao governo, ao Estado, às igrejas, aos partidos. Isso não quer dizer que não vamos nos relacionar. Ao contrário, nós temos de nos relacionar, mas temos uma linha política própria, metas próprias, formas de organização próprias.

O MST passou o tempo inteiro dos governos Lula e Dilma se mobilizando. Ninguém neste país tem moral para dizer que o MST parou de lutar. Ao contrário, esses mesmos que nos criticam pela esquerda não estavam nas nossas marchas, nas ocupações de terras que ocupamos, não estavam nos enterros das vidas que pagamos na luta de classes. As críticas de que o MST parou de lutar e está cooptado pelo governo não nos atinge. Recomendaria àqueles que as fazem que reflitam melhor a quem dirigem suas pedras, porque, na nossa concepção, mesmo que tenhamos críticas a outros parceiros da classe trabalhadora, temos de ter cuidado. As críticas têm de ser fraternais e em ambientes de reunião para que sejam construtivas. A crítica ácida, dura e permanente tem de ser contra os nossos inimigos de classe: a burguesia, os latifundiários, as multinacionais, as empresas de comunicação.

IHU On-Line – Essas críticas argumentam que o MST deveria ter um questionamento mais intenso em relação à postura do governo federal nos incentivos ao agronegócio, por exemplo.

João Pedro Stédile – Vocês são testemunhas, na página do IHU, do discurso do MST, que é sempre de “pau e pau”no agronegócio, no governo, quando erra; é só pesquisar no Google, se tiver paciência. No ano passado nós ocupamos dois ministérios. Qual foi o movimento social que ocupou algum ministério? Nós não somos contra as críticas; elas em geral nos ajudam, mas temo que muitas dessas críticas que vêm de setores esquerdistas são para fazer uma disputa ideológica besta. Era sobre isso que Lenin afirmava: “o esquerdismo é uma doença infantil”. Para dizer que você é melhor que os outros, você chama o outro de pelego. Mas se estamos corretos ou não, se somos melhores ou não para o povo brasileiro, só a história poderá dizer. No futuro, o povo vai julgar se o MST errou e onde errou. Nosso compromisso é com as mudanças sociais.

IHU On-Line - Como a questão agrária se insere na atual conjuntura política nacional? Será um tema presente nas eleições previstas para este ano?

João Pedro Stédile – A reforma agrária está paralisada, porque, mesmo quando se desapropria uma fazenda para resolver algum problema de acampamento, isso não é reforma agrária; é uma solução de um problema político e social. Em geral, essas desapropriações pontuais só resolvem o problema de um acampamento específico e não afetam a estrutura da propriedade da terra.

Reforma agrária no sentido stricto sensu é um programa de governo para eliminar o latifúndio e democratizar a propriedade da terra. O que está em curso no Brasil é uma concentração da propriedade da terra. Agora, por que isso acontece? Não é só por causa da ação de tal ou qual ministro. Isso acontece porque o capital financeiro e multinacional tomou a iniciativa de disputar a terra, a água, as sementes, e isso gerou uma hegemonia do agronegócio. O modelo de dominação capitalista está presente na produção, nas mercadorias agrícolas, na mídia, no Estado, no governo, como a força majoritária, e isso bloqueou a discussão e as conquistas da reforma agrária.

 

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