Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

 

A Medida Provisória (MP) 759/2016, que estabelece novas diretrizes legais sobre a regularização de terras urbanas e rurais no país pode ser apreciada a qualquer momento pela Câmara de Deputados. A matéria já consta na pauta desta semana da Câmara e tramita em caráter de urgência. De autoria do presidente Michel Temer (PMDB) e publicada na antevéspera de natal do último ano, a MP convertida em Projeto de Lei de Conversão (PLV) segue pela casa legislativa após sofrer alterações no texto original por senadores e deputados federais integrantes da comissão mista.


Para parlamentares de oposição ao Governo Federal e movimentos populares, o contexto recente de aprovação do relatório elaborado pelo senador Romero Jucá (PDMB-RR), na última quarta-feira (3), evidencia o ambiente legislativo para temas de grande relevância para a população, principalmente a de menor renda: a ausência de abertura ao debate público à altura do impacto da medida e o fácil avanço no Congresso de matérias de interesse da bancada ruralista.


“É preciso tornar conhecida a MP no momento da votação pela comissão. Isso mostra o quanto se ressente da necessidade de um maior conhecimento, um debate mais aprofundado. Não se consultou a sociedade plenamente, os institutos e as organizações que atuam, que militam, que trabalham em torno da questão rural e da questão urbana”, denunciou o deputado Edmilson Rodrigues (PSOL-PA). “Essa MP tem uma história: a história da luta pela terra no Brasil. A história da terra no Brasil é uma história que precisa ser discutida e, neste momento conjuntural, nós temos medo e temos certeza de que há muitos interesses”, pondera o deputado João Daniel (PT-SE), reforçando a necessidade de ampliação do debate público.


Com prazo de vigência de 60 dias e prorrogáveis pelo menos período, a MP pode vigorar até o dia 01 de julho. A extensão dos trabalhos da comissão até a data limite poderia, na avaliação da oposição, ampliar o reduzido número de quatro audiências públicas realizadas pela Comissão, com participação majoritária de representantes de órgãos públicos da base de apoio a Temer. Dos 24 convidados participantes das audiências, apenas dois fazem oposição à polêmica medida. Além do MST, a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).


Outra denúncia feita de maneira recorrente pela oposição na comissão mista foi a de disponibilização da primeira e última versão do relatório apenas no momento de votação do texto pelos parlamentares – o que impede a leitura anterior. A deputada Luiza Erundina (PSOL-SP) chamou a situação de “votar no escuro” e reforçou que o desconhecimento obstaculiza o debate, principalmente pelos opositores à matéria. “Não é razoável o que acontece nesta casa, se vota no escuro ou se vota por ordem de quem tem poder. (...) Entendo que isso não é democrático. Isso deixa uma imagem de que as coisas se fazem sem o devido debate, sem a devida análise, sem o contraditório, sem o contraponto, e isso empobrece o debate. Compromete a legitimidade do resultado de uma votação”, problematizou a deputada.


A aprovação do relatório, com ampla margem de 16 votos favoráveis e apenas quatro contrários, demonstra como a medida encontra no Congresso um cenário favorável a esses temas.  Dos 37 deputados e senadores com titularidade ou suplência na composição inicial da comissão, 13 integram a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), articulação do setor ruralista para a atuação legislativa. Os cargos centrais ao trabalho do colegiado, relator e presidente, são preenchidos por integrantes da FPA, o senador Jucá e o deputado federal Izalci Lucas (PSDB-DF), respectivamente. Este cenário deve se repetir na Câmara. Como aponta a agência A Pública. Do total de 513 deputados federais, 207 são da bancada ruralista. No Senado o contexto é semelhante: dos 81 senadores, 32 possuem estreitos vínculos com interesses do agronegócio.


Retrocessos


Na avaliação do presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), Gerson Teixeira, o texto final encaminhado à Câmara contém dispositivos que podem colaborar para a reconcentração fundiária e privatização das terras públicas. Para ele, a medida que é, desde a primeira versão, “estruturalmente danosa”, acresceu no percurso pela comissão mista um dispositivo que reforça a desobrigação do Estado em cumprir com obrigações constitucionais no processo de regularização fundiária.


O novo texto estabelece que o prazo limite para emancipar uma família, ou seja, possibilitar ao assentado as condições adequadas para prática agrícola, é de 15 anos. Para aqueles que já estão 15 anos à espera, o prazo limite é três anos. Para Teixeira, o problema não está no prazo limite de emancipação, mas na ausência de menção no texto às obrigações do Estado, como prevê o Artigo 188 da Constituição Federal. Pela lei constitucional, “a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o Plano Nacional de Reforma Agrária”. O texto do PLV não faz menção às políticas que devem acompanhar a emancipação do assentado.


“A maior parte dos assentamentos tem condições precárias. Não tem crédito, não tem infraestrutura. Tem assentamento de 20 anos que não tem nenhum poço de água. Ao emancipar uma pessoa na condição que está, sem ter condições de produzir, ela vai vender a terra. Tudo indica, na síntese desta MP, é que vamos entrar numa novo processo de reconcentração de terras bastante acentuado, com o componente da estrangeirização”, aponta Teixeira, em referência ao PL 4059/2012 que tramita no Congresso e que retira restrições para compra de terras brasileiras por estrangeiros. “Isso é grande obstinação, cobiça da bancada ruralista pela terra dos assentados”, complementa.


Ele manifesta preocupação com a possibilidade de apropriação dos 80 milhões de hectares de terras públicas da União por grandes empresas e latifundiários, e problematiza que a titulação massiva é a política adotada pela gestão Temer para se descomprometer com a política agrária. “O Incra anunciou, apostando na aprovação da MP, que irá emancipar 280 mil  famílias até o final do ano. Esta obstinação em se livrar do assentado é porque está sucateado, já que não poder fazer nada”, em referência ao progressivo corte no orçamento destinado ao órgão federal.


Outro elemento adicionado ao texto na comissão mista é a possibilidade de regularização fundiária de megalatifúndios. Nas normativas anteriores, o limite de área de terra pública regularizada era de 1,5 mil hectares na Amazônia Legal, grande extensão de terra dado o contexto da região. Pelo novo texto, áreas de até 2,5 mil hectares, em qualquer região do país, estão incluídas na política de regularização. “1,5 mil hectares fora da Amazônia já seria um absurdo de área, imagine 2,5 mil hectares”, destaca.


Manifestações contrárias


Desde a publicação da MP no Diário Oficial da União em dezembro de 2016, um conjunto de organizações e organismos públicos tem se manifestado contrário à matéria. Em abril, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal, enviou ao Congresso Nacional uma nota técnica desaprovando o uso do dispositivo constitucional para tratar do tema, desrespeitando aos princípios de urgência e relevância necessários à emissão de uma MP.


“Essa matéria não poderia, de maneira alguma, ser tratada por Medida Provisória. (...) A urgência e a relevância, necessariamente, tinham de ser para garantir infraestrutura para os assentamentos, para os trabalhadores rurais, para todos aqueles que fazem a luta pela política de garantia do direito à terra no nosso país. Infelizmente essa matéria não faz isso. Ela, na verdade, quer ser mais uma vez um instrumento de especulação dos grandes proprietários de terra, latifundiários, representados inclusive nesta comissão, querendo garantir que eles tenham uma maior capacidade ainda de fazer a compra de terras de pequenos produtores rurais, de pequenos agricultores, de camponeses”, denuncia a nota técnica.


“Eles [os ruralistas] se aproveitaram da urgência para fazer desaguar uma quantidade de temas extremamente preocupantes. Trata-se de uma avalanche que tem como finalidade principal acabar com o patrimônio público e privatizar terras e bens do Brasil”, declara a assessora de política agrária da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Cleia Anice Porto


Logo depois da manifestação da PFDC, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) dirigiu à Presidência da República uma recomendação para que suspenda a tramitação da MP em razão de “representar uma grave distorção do sistema democrático”, ao alterar mais de 19 legislações e normativas estabelecidas para o tema, e fruto da reivindicação e debate popular, como a Lei da Reforma Agrária e o Estatuto das Cidades.


A articulação e construção de uma unidade de resistência também estão no horizonte das manifestações públicas contrárias à MP. Um coletivo composto por 88 organizações urbanas e rurais elaboraram a carta pública “MP 759 — A desconstrução da Regularização Fundiária no Brasil”. O documento pretende, além de paralisar a tramitação da matéria, convocar a população a apoiar a luta pela reforma agrária e urbana no país.


Órgãos governamentais, como a Câmara de Direitos Sociais e atos administrativos em geral do Ministério Público Federal, também manifestaram desaprovação à medida.


As manifestações de organizações e órgãos públicos, em consonância com movimentos sociais, reforçam que o Congresso não faz a real escuta à população sobre suas reivindicações, bem como que a aprovação da matéria consolidará a injustiça social no campo e cidade, acentuando um cenário da violência. “As medidas do Congresso e do executivo em aprovar a grilagem de terra para regular a terra pública para latifundiários e políticos é apenas o inicio do desmonte da soberania nacional e a porta de aumento da violência no campo”, declara o membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Alexandre Conceição.

 

Por Lizely Borges
Da Página do MST

 

*Editado por Leonardo Fernandes

 

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